Monitorando agrotóxicos: rigor científico em prol da sociedade e do meio ambiente
O tema agrotóxico é bastante polêmico tanto no Brasil quanto em outros países. Se por um lado seu uso é indispensável para fomentar uma agricultura suficientemente produtiva, por outro lado o risco de acumular-se no ambiente ou causar doenças em humanos e animais é motivo de preocupação. A resposta para essa questão é complexa, pois envolve fatores de quão tóxico, de quanto é ingerido e do tempo de exposição a um determinado produto. Por causa disso os Ministérios da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), Meio Ambiente (MMA) e Saúde (MS), no caso deste último sob responsabilidade da Agência Nacional de Vigilância Sanitária – Anvisa, controlam os agrotóxicos para assegurar que seu uso não imponha risco à saúde humana e ao meio ambiente.
Antes de permitir que um agrotóxico seja utilizado num alimento o Ministério da Saúde estabelece os Limites Máximos de Resíduos para proteger a população de níveis nocivos de agrotóxicos nos nossos alimentos. O Limite Máximo de Resíduos é a quantidade máxima de resíduo de um agrotóxico, expresso em mg kg-1, que pode estar legalmente presente nos nossos alimentos ou nas rações dos animais. Os Limites Máximos de Resíduos são baseados nos resultados provenientes de experimentação em campo seguindo a Boa Prática Agrícola, e análise de resíduos seguindo a Boa Prática de Laboratório. Presume-se que os alimentos derivados das culturas, que estão de acordo com os respectivos limites máximos de resíduos são toxicologicamente aceitáveis explica Dra. Nádia Regina Rodrigues, pesquisadora do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas, da Universidade Estadual de Campinas (CPQBA/Unicamp). Doutora em Engenharia Química, Rodrigues coordena atualmente a Divisão de Química Analítica do CPQBA, que tem, entre as principais atribuições, realizar esses estudos em parceria com as empresas. A pesquisadora menciona que, para isso, é importante conhecer muito bem toda a cadeia do uso desse agrotóxico: onde e quando ocorreu o plantio onde foi usado, como foi colhido o produto agrícola, características de clima e solo, e a quantidade e frequência de aplicação do agrotóxico em questão.
Conforme ressalta Rodrigues, dada a seriedade do tema, para se fazer essas análises, o laboratório precisa ser credenciado, junto ao Inmetro (Instituto Nacional de Metrologia), na norma BPL, comprometendo-se a atender a diversas normas e especificações técnicas, que conferirão confiabilidade e rastreabilidade aos resultados apresentados. “Nós fomos o único laboratório dentro de universidade que foi reconhecido pelo Inmetro em BPL (Boas Práticas de Laboratório) na área de agrotóxicos”, salienta Rodrigues, lembrando que essa é uma exigência para laboratórios que prestam serviços para empresas que registram agrotóxicos ou renovam seus registros para comercialização. Para ela, tal certificação é importante porque o tema tem forte impacto na sociedade. “O que mais se preza é a rastreabilidade dessas amostras e confiabilidade dos resultados. Temos que compilar todos os dados para depois poder gerar essas informações. ”
A pesquisadora comenta que foi convidada pela Unicamp a ministrar um curso sobre BPL voltado aos servidores da instituição o qual teve excelente adesão por parte de servidores de vários setores da universidade. “Desde funcionários, alunos, estagiários, todos devem ter qualidade dentro de laboratório. Abrange todas as áreas, não é especifico para agrotóxicos”. Para Rodrigues as boas práticas estão se tornando cada vez mais exigência dentro da pesquisa científica.
Uma mão para a economia brasileira
Dois projetos dos quais a equipe do CPQBA participou foram particularmente importantes no que diz respeito ao monitoramento dos resíduos de agrotóxicos. No primeiro deles, uma parceria entre várias instituições de pesquisa no país permitiu que o mamão brasileiro pudesse se estabelecer no exigente mercado europeu.
“O Brasil é um grande exportador de mamão. E o nosso mamão era barrado na União Europeia por conter resíduos de ditiocarbamato, um fungicida, acima dos Limites Máximos de Resíduos estabelecido na UE para ditiocarbamato em mamão. No entanto os produtores brasileiros alegavam que não usavam ditiocarbamato na produção de mamão. Quem conta é Rosângela Abakerli, pesquisadora aposentada da Embrapa Meio Ambiente que atuou por vários anos como pesquisadora convidada junto ao laboratório que Rodrigues coordena. Abakerli coordenou o projeto que, junto com a equipe do CPQBA e do Instituto Adolfo Lutz, tentou resolver a questão. As pesquisadoras desconfiavam que, muito provavelmente, estava ocorrendo um problema de falso positivo já que as análises dos resíduos de ditiocarbamatos são realizadas de maneira indireta envolvendo a dosagem de dissulfeto de carbono. Assim, quando existe a formação endógena de dissulfeto de carbono nas culturas analisadas há ocorrência de falso positivo. Para verificar o nível de dissulfeto de carbono endógeno, frutos isentos de agroquímicos sulfurados foram cultivados em estações experimentais no ES, BA e DF, para fornecer amostras controle, que foram submetidas às condições analíticas de determinação de resíduos de ditiocarbamatos. Colhidas as frutas, amostras foram submetidas às três instituições de pesquisa, cada qual realizando o monitoramento por uma metodologia diferente.
Foi verificado que existe formação endógena de dissulfeto de carbono no mamão. Através de uma parceria com o Laboratório Thompson, do Instituto de Química da Unicamp, determinou-se, via espectrometria de massas, qual era a substância. “Chegamos à conclusão de que era benzilisotiocianato, que está presente naturalmente no mamão, tendo um papel de proteção da fruta”, comunica a ex-pesquisadora da Embrapa, “durante o processo analítico essa molécula se decompunha e mascarava o resultado”, complementa.
Com esses resultados em mãos, contam as entrevistadas, foi apresentado um relatório ao MAPA, que o submeteu à UE, culminando na modificação do limite de tolerância do ditiocarbamato em mamão. “Aí as exportações voltaram ao [patamar] que devia”, celebra Abakerli.
Polêmicas à parte, a ciência.
O segundo projeto destacado por Rodrigues foi o monitoramento dos resíduos de um dos herbicidas mais utilizados a nível mundial – e, sem dúvida, um dos mais polêmicos –, o de princípio ativo glifosato. Mais do que apenas à substância, a polêmica se refere ao seu uso indissociável (esse princípio ativo também faz parte de formulações usadas em plantios de produtos agrícolas convencionais) das tecnologias de transgenia. O glifosato é aplicado nas lavouras de culturas geneticamente modificadas (sobretudo soja, mas também algodão e milho – comercialmente chamada de Roundup Ready®, ou RR), as únicas plantas que resistem à ação do princípio ativo. Qualquer outro vegetal, principalmente as ervas-daninhas, é eliminado pela aplicação do produto, impedindo que interfira no crescimento da variedade cultivada. A polêmica gira em torno do fato de muitos pesquisadores, entidades ambientalistas e de saúde (governamentais e não-governamentais) e movimentos sociais apontarem potenciais riscos à saúde e ao ambiente em decorrência do cultivo e consumo da soja transgênica produzida com glifosato. De outro lado, outros pesquisadores, empresas de biotecnologia e entidades voltadas ao agronegócio descartam tais preocupações e defendem o uso do agente químico na tarefa de aumentar a produtividade agrícola da soja.
A despeito de toda polêmica, o passo inicial era saber se no Brasil o uso do glifosato tem respeitado a legislação e se haveria, na soja que consumimos, resíduos deste herbicida que estivessem acima do permitido. A pesquisadora da Unicamp comenta que, em grande parte devido à alta complexidade da análise, somente agora o glifosato deve ser inserido no monitoramento do PARA – Programa de análises de resíduos de agrotóxicos – ANVISA. “As análises para a quantificação de resíduos de glifosato são demoradas e caras. Quando realizamos as análises, quantificamos tanto o glifosato quanto o seu metabólito: o ácido aminometilfosfônico (Ampa)”, informa, agregando que são necessários, além de equipamentos, tempo e pessoal especializado para realizá-las. “Temos um sistema [de análises cromatográficas] HPLC com detector de fluorescência dedicado a isso”.
Apesar de o glifosato não estar, ainda, oficialmente sendo monitorado pelos programas governamentais, as próprias empresas vêm se antecipando nessa tarefa. A equipe da divisão coordenada por Rodrigues foi, assim, convidada a participar de um projeto de uma grande empresa de biotecnologia visando monitorar os resíduos do herbicida nos grãos de soja geneticamente modificada convencionais comercializados e no solo das áreas de cultivo.
O estudo, menciona Rodrigues, foi realizado através de várias instituições de pesquisa brasileiras. “Foi conduzido um monitoramento durante 5 anos em 8 áreas de fazendas particulares que comercializam a soja [RR]”,
discorre, listando que os estados nos quais foram coletadas as amostras foram RS, PR, MS, MT, GO, BA. A partir dos dados gerados, manifesta a pesquisadora, foi elaborado o livro Monitoramento Ambiental da Soja Roundup Ready®, trazendo as principais conclusões obtidas. O que, por fim, constatou-se, foi que nenhuma das amostras de grãos de soja analisadas continha resíduos de glifosato superiores aos aceitáveis, de acordo com o LMR. “Quando você utiliza o agrotóxico como deve ser utilizado”, sublinha Rodrigues, referindo-se à necessidade de cumprir-se o receituário agronômico e as especificações técnicas de aplicação do produto, “ você não tem problema de ultrapassar o Limite Máximo de Resíduo aceitável”.
Abakerli, da Embrapa, que participou também desse projeto, diz que os valores encontrados se localizavam muito abaixo dos níveis tolerados. “A tolerância no Brasil é de 10,0 mg/kg e o maior valor observado, em cinco anos, foi próximo de 2,0 mg/kg. Bem abaixo do LMR”, salienta. Ela assinala que uma contribuição importante decorrente do estudo foi o estabelecimento do chamado tempo de meia-vida do glifosato na soja, ou seja, o tempo necessário pra que a substância seja degradada até restar metade da concentração anteriormente presente. “A dissipação, na soja, é de aproximadamente 9 dias. Significa que a cada 9 dias você tem metade da concentração que tinha antes”, nota. Um último aspecto levantado pela ex-pesquisadora da Embrapa é que tampouco encontrou-se contaminação dos solos avaliados, embora, como menciona, isso possa depender de fatores como os tipos de micro-organismos presentes. “No solo, o maior degradador do glifosato são os micro-organismos. Se o solo for pobre em matéria orgânica, ele pode permanecer porque é uma molécula bastante estável”, contextualiza. Apesar disso, garante, não se encontrou qualquer evidência de que o herbicida poderia se infiltrar no solo. “No solo, foi feito em camada superficial e até 20 cm de
profundidade pra avaliar se havia lixiviação, e aparentemente não há. Não vai contaminar lençóis
freáticos, por exemplo”, conclui.
Na opinião das entrevistadas, o trabalho realizado merece ser ressaltado. Na visão de Rodrigues do CPQBA, nunca foi feito um monitoramento nessa magnitude, com a duração de 5 anos e em tantas localidades diferentes, finaliza.
Para se avaliar o quanto de resíduo de agrotóxico pode permanecer em um alimento sem que isso cause danos à nossa saúde, as agências de vigilância sanitária em diversos países utilizam alguns critérios baseados em muitos estudos.
O principal critério utilizado é o Limite Máximo de Resíduos, ou LMR, definido pela ANVISA como “a quantidade máxima de resíduo de agrotóxico ou afim, oficialmente permitida no alimento, em decorrência da aplicação em uma cultura agrícola, expresso em miligramas do agrotóxico por quilo do alimento (mg/kg) ”. Para estabelecer esse limite, são utilizados parâmetros cientificamente determinados, como, por exemplo, a Ingestão Diária Aceitável (IDA), que é, novamente, segundo a ANVISA, “um parâmetro de segurança definido como a quantidade máxima de agrotóxico que podemos ingerir por dia, durante toda a nossa vida, sem que soframos danos à saúde por esta ingestão”. Os valores de IDA são calculados para cada tipo de agrotóxico e expressos em miligramas da substância por quilo de peso corpóreo da pessoa.
Autor: Gustavo Steffen de Almeida
Reportagem publicada pelo autor na revista eletrônica ComCiência e adaptada com sua autorização. Link da matéria original: http://www.comciencia.br/monitoramento-de-agrotoxicos-exige-equipamentos-caros-pessoal-especializado-e-anos-de-rastreamento/#more-1645