A relevância da pesquisa na domesticação de plantas medicinais

Essenciais, pesquisas com domesticação de plantas medicinais geram importantes resultados, ao mesmo tempo em que expõem dificuldades e fragilidades da ciência no Brasil

Por Gustavo Steffen de Almeida

Cada vez mais se reconhece o potencial de uso das plantas da biodiversidade brasileira. Além dos usos alimentícios, das fibras têxteis, etc, o uso medicinal é, talvez o que mais vem se difundindo. Além de receber progressiva atenção de pesquisadores e indústria, o uso popular permanece existindo e parece até estar recobrando força atualmente. A questão é que, desde sempre, as plantas medicinais utilizadas são, quase que totalmente, obtidas do ambiente natural – variedades selvagens. Esse cenário motiva o desenvolvimento de uma ampla gama de pesquisas objetivando a domesticação destas plantas (ver box). Apesar de imprescindíveis, a realização destas pesquisas ainda encontra, no entanto, obstáculos substanciais em nosso país.

A maior parte do mercado de plantas medicinais – sejam as plantas utilizadas na pesquisa científica, as que são fontes de extratos incorporados a produtos industriais e/ou farmacêuticos e as vendidas ao público no mercado popular – é abastecido via extrativismo, informa Ílio Montanari Júnior, pesquisador da Divisão de Agrotecnologia do Centro Pluridisciplinar de Pesquisas Químicas, Biológicas e Agrícolas da Universidade Estadual de Campinas (CPQBA/Unicamp).

Segundo o pesquisador, isso causa, fundamentalmente, dois problemas:

O primeiro é a pressão sobre os recursos naturais, que faz com que muitas das espécies medicinais mais importantes estejam já relacionadas em listas vermelhas de espécies ameaçadas de extinção.

O segundo diz respeito à cadeia produtiva, ou seja, a oferta incerta e a baixa confiabilidade do material obtido a partir das variedades selvagens. Além de não ser possível garantir a constância no fornecimento, as plantas obtidas do ambiente natural apresentam alta variação em termos de composição química – característica primordial quando se tratam de espécies medicinais.

Deste modo, garante Ílio, o cultivo agrícola resolve o problema ambiental da sobrecoleta, e padroniza a cadeia de produção, propiciando o fornecimento de matéria-prima de qualidade conhecida (principalmente quanto à composição química), em quantidade suficiente e de maneira constante.

No CPQBA, a equipe do pesquisador se empenha em obter as variedades mais promissoras em termos de produção dos compostos de interesse e de adaptação à prática agrícola. Basicamente, “o processo se dá através do melhoramento genético clássico, a nível de campo”, pontua. Nesse método, são escolhidos para o cruzamento “pais” que contemplem as características de interesse científico e/ou comercial desejadas (tamanho da planta, rendimento de óleo essencial, teor de princípio ativo, etc) e também boas características agrícolas, como resistência à pragas, produtividade e capacidade de rebrota, por exemplo. A partir daí se avalia a progênie (filhos) de primeira geração e se escolhem novos pais, realizando-se novo cruzamento e obtendo-se uma nova progênie (2ª geração) que vai ser analisada e selecionada, e assim sucessivamente. O objetivo é chegar às características que se deseja, obtendo-se novas cultivares, ou seja, variedades cultiváveis. “Essas já não são mais selvagens; é uma população transformada”, complementa Ílio, “já pode ser dada ao agricultor”.

Segundo o pesquisador da Unicamp, da seleção inicial das espécies até a disponibilização da semente da nova cultivar, são necessários, no mínimo, dez anos. Ele diz que o melhoramento clássico em campo, apesar de requerer mais tempo, é indispensável, pois metodologias modernas – como sequenciamento genético, por exemplo – não são suficientes, por ser preciso avaliar no campo o comportamento da cultivar.

O Pionerismo da Unicamp

As primeiras duas cultivares de plantas medicinais do Brasil foram concebidas no CPQBA. As espécies domesticadas são a carqueja (Baccharis trimera), que é utilizada popularmente como anti-inflamatória, vermífuga e antiparasitária, e a macela (Achyrocline satureioides), com potencial efeito calmante e antialérgico, além de aplicação industrial como enchimento de travesseiros. Esta conquista tem especial importância pelo fato de ambas as plantas figurarem em listas vermelhas de espécies ameaçadas em seu ambiente natural.

As cultivares foram registradas junto ao Ministério da Agricultura e são protegidas pela Lei de Proteção de Cultivares, que é análoga à Lei de Propriedade Industrial, mas voltada à organismos vivos.  Montanari Jr. afirma que a variedade já está licenciada, uma vez que uma empresa já se interessou em produzi-la em escala comercial. “Estamos produzindo as sementes”, assegura.

Além destas espécies, há, no centro de pesquisa, projetos de domesticação em andamento com diversas outras, dentre as quais fáfia (gênero Pfaffia), erva-baleeira (Cordia verbenacea), guaco (Mikania glomerata), espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) – todas de interesse terapêutico – e estévia (Stevia rebaudiana), de interesse para a indústria alimentícia como edulcorante.

Dado o caráter pluridisciplinar do CPQBA, a domesticação destas plantas é a primeira – e primordial – etapa na realização de muitas pesquisas conjuntas com outras divisões do centro. A partir do cultivo das variedades é possibilitada a extração de óleos essenciais e extratos padronizados e, por conseguinte, o isolamento de seus princípios ativos. Essas substâncias dão margem a uma ampla gama de pesquisas, através das quais se visualizam aplicações em áreas como saúde humana e animal, alimentos, proteção agrícola entre outras.

Um percurso sinuoso

Apesar dos evidentes progressos conseguidos pelos pesquisadores envolvidos com a domesticação das plantas medicinais e da importância desse tipo de pesquisa, a chamada bio-prospecção (exploração científica da biodiversidade com intuito de encontrar novos compostos de interesse) no Brasil se vê enredada num sem-fim de controvérsias.

Quando perguntado sobre as dificuldades em desenvolver as pesquisas acima mencionadas, Montanari Jr. mostrou-se visivelmente desapontado. “É muito difícil trabalhar com elas [plantas medicinais] por causa das leis brasileiras”. Como explicou, a situação se tornou complexa a partir da criação do CGen (Conselho Nacional do Patrimônio Genético), órgão vinculado ao Ministério do Meio Ambiente (MMA), e a publicação da Medida Provisória 2.186-16 de 2001, que tratava do tema do uso da biodiversidade. Com o legítimo intuito de regulamentar o uso do patrimônio genético e combater a biopirataria, tais medidas acabaram por tornar-se excessivamente restritivas. Foram imensamente prejudicados os cientistas que, há décadas, realizavam pesquisas com plantas nativas brasileiras – até mesmo as amplamente difundidas, a exemplo da mandioca, caju ou abacaxi. “Cerca de 40 mil pesquisadores foram [à época] colocados na ilegalidade”, lamenta Ílio, “do dia para a noite”.

Somente em 2011, segundo o entrevistado, foi lançada uma nova portaria a fim de legalizar a situação desses pesquisadores, o que, infelizmente, não resolveu o problema. Devido às divergências entre a legislação imposta pelo CGen e as políticas de proteção ambiental do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais), alguns dos que trabalhavam com as espécies nativas, em especial as medicinais, se viram metidos em imbróglios jurídicos ou mesmo sujeitos à pesadas multas quando tentaram registrar a propriedade intelectual de suas novas cultivares, como foi o caso de Montanari Jr. O mais recente capítulo dessa intricada novela foi o lançamento, no ano passado, da lei número 13.123, ou Nova Lei de Biodiversidade. Segundo as novas diretrizes, o processo será facilitado mediante o cadastramento dos pesquisadores, que obterão autorização para o uso de recursos da biodiversidade. “O problema é que o formulário de cadastro ainda não existe!”, diz Ílio, informação confirmada pelo próprio site do MMA, onde se lê que o funcionamento do cadastro depende de regulamentação, e é solicitado que se aguarde a publicação da normatização da referida lei. Diante disso, muitos pesquisadores se veem confrontados com o dilema de continuar ou não suas pesquisas – algumas já bem avançadas – com recursos genéticos nativos.

Apesar de todos os esforços que tem sido feitos e toda a dedicação nas pesquisas com a biodiversidade em nosso país, o pesquisador da Unicamp teme que o Brasil esteja deixando passar grandes oportunidades em decorrência da burocracia e de processos complicados. “O Brasil poderia colocar no mundo muitos produtos baseados em nossa biodiversidade”, e emenda, “estamos perdendo o bonde”.

Domesticação de Plantas

Existe uma ideia popular de que, já que uma planta nasce sozinha na mata, ela simplesmente vai nascer quando a plantarmos, e irá crescer do jeito e no tempo que quisermos. No entanto, as plantas selvagens, que são aquelas encontradas na natureza, possuem características diferentes entre si e que, frequentemente, são antagônicas ao processo de produção agrícola.

 A agricultura exige uma germinação uniforme, com todas as plantas brotando praticamente ao mesmo tempo e crescendo a uma taxa comum, o que permite uma população de plantas com características homogêneas. No entanto, no ambiente natural não é assim que ocorre, pois ainda que dentro da mesma espécie, cada variedade da planta (que são muitas) tem seu ritmo próprio de crescimento, características de germinação e requisição nutricional, o que é uma estratégia evolutiva da espécie para adaptar-se frente às alterações do ambiente.

“Se todas as plantas germinarem e começarem a crescer ao mesmo tempo, um evento extremo, como uma queimada, pode eliminar toda a população.”, afirma Ílio Montanari Júnior. Por isso, diz, existem processos fisiológicos, como a dormência das sementes, que possibilitam que as plantas germinem a tempos diferentes.

Outros aspectos como tamanho, forma e produtividade acabam apresentando enorme variação dentro de uma população selvagem.

 Assim sendo, a pesquisa em domesticação de plantas visa identificar variedades selvagens que apresentam características de interesse e adaptá-las às condições de agricultura, promovendo populações com características as mais uniformes possível.

Esta matéria foi originalmente publicada pelo autor na revista eletrônica de divulgação científica ComCiência (www.comciencia.br) e por ele adaptada.